INTRODUÇÃO
A encefalopatia hipóxico-isquêmica (EHI) representa um desafio persistente para a neonatologia e a neuropediatria modernas, destacando-se como uma das principais causas de mortalidade e morbidade neurológica perinatal. O impacto global da EHI é substancial, com estimativas que apontam para uma incidência variando entre 1 a 6 casos por mil nascidos vivos a termo, sendo mais elevada em países de baixa e média renda. Essa carga epidemiológica reflete não apenas os determinantes socioeconômicos, mas também as disparidades no acesso às tecnologias de monitoramento fetal e aos cuidados intensivos neonatais.
Historicamente, a compreensão da EHI evoluiu de descrições patoanatômicas grosseiras de leucomalácia e necrose neuronal para modelos fisiopatológicos altamente integrados, que incorporam conhecimentos de neurobiologia molecular, imunologia e bioenergética mitocondrial. O reconhecimento das fases distintas de injúria neuronal—primária, secundária e terciária—não apenas refinou a conceituação da condição, mas também abriu horizontes terapêuticos antes inimagináveis. A introdução da hipotermia terapêutica como estratégia neuroprotetora, respaldada por ensaios clínicos randomizados, transformou-se no marco inicial de um novo paradigma de tratamento. A relevância clínica da EHI transcende sua apresentação aguda, estendendo-se às sequelas a longo prazo, que incluem paralisia cerebral, epilepsia refratária, déficits cognitivos e distúrbios do comportamento. A heterogeneidade fenotípica desses desfechos ilustra a complexidade intrínseca do insulto hipóxico-isquêmico e reflete as múltiplas variáveis que modulam a vulnerabilidade cerebral e a resposta à injúria. Nesse contexto, a EHI permanece como um tema central de investigação translacional, onde avanços no diagnóstico precoce, estratégias terapêuticas emergentes e biomarcadores prognósticos redefinem continuamente o cenário clínico e científico.
FISIOPATOLOGIA
A fisiopatologia da EHI é intrinsecamente dinâmica, refletindo a interação de múltiplos eventos lesivos que se desdobram em cascata ao longo de períodos temporais distintos. O episódio inicial de hipóxia-isquemia culmina em uma falência bioenergética aguda, com depleção do trifosfato de adenosina (ATP), perda da homeostase iônica e liberação exacerbada de neurotransmissores excitatórios, especialmente o glutamato. A resultante excitotoxicidade desencadeia influxo de cálcio, ativação de proteases, lipases e endonucleases, além de promover a geração de espécies reativas de oxigênio (ROS) e nitrogênio (RNS), potencializando o dano celular (Continuum Neurology, 2018, p.59).
Ao término da fase primária, observamos um aparente período de recuperação clínica, denominado "lua de mel metabólica", que mascara o início da fase secundária de injúria. Este estágio, que se estende de seis a vinte e quatro horas após o evento inicial, é caracterizado por apoptose celular mediada por vias mitocondriais e receptoras de morte, neuroinflamação com ativação microglial e disfunção das células gliais de suporte. A liberação de citocinas pró-inflamatórias, como a interleucina-1β (IL-1β) e o fator de necrose tumoral-alfa (TNF-α), estabelece um ambiente neurotóxico que amplifica a perda neuronal e a dismielinização oligodendroglial (DynaMed, Background, 2024).
Na fase terciária, que se prolonga por semanas a meses, ocorrem remodelação tecidual, gliose reativa e reorganização sináptica inadequada. Processos epigenéticos, incluindo metilação do DNA e modificações das histonas, modulam a expressão gênica de fatores de sobrevivência e morte neuronal, estabelecendo o substrato para deficiências cognitivas e motoras crônicas. A heterogeneidade das áreas cerebrais lesadas depende não apenas da intensidade e duração do insulto hipóxico, mas também da idade gestacional e da maturação neuronal. Enquanto em neonatos a termo predomina o acometimento dos núcleos da base, córtex perirolândico e hipocampo, nos prematuros há predileção pela substância branca periventricular, com predomínio de leucomalácia (Diagnostic Imaging: Pediatric Neuroradiology, 2019)
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
A apresentação clínica da EHI é multifacetada, refletindo a topografia e a extensão das lesões encefálicas. Em neonatos, o quadro típico inclui depressão neurológica imediata ao nascimento, com Apgar ≤5 no décimo minuto de vida, necessidade de reanimação neonatal intensiva e acidose metabólica documentada por gasometria arterial com pH inferior a 7,0. O exame neurológico precoce revela alterações no nível de consciência, variando de irritabilidade e hipervigilância nas formas leves a estupor e coma nos casos mais graves. O sistema de classificação proposto por Sarnat e Sarnat permanece a ferramenta mais robusta para estratificação clínica, discriminando três graus de encefalopatia. No estágio I, observam-se sinais de hiperalerta, tônus muscular aumentado e reflexos osteotendinosos vivos; no estágio II, predominam letargia, hipotonia e convulsões tônicas e clônicas multifocais; o estágio III é marcado por coma profundo, arreflexia e apneia central.
Convulsões neonatais são frequentemente sutis, manifestando-se por movimentos oculares, mastigatórios ou apneias recorrentes. Essas crises são majoritariamente subclínicas, detectáveis apenas pela monitorização eletroencefalográfica contínua ou amplitude-integrada (aEEG). Nos sobreviventes, o espectro clínico crônico inclui paralisia cerebral espástica, principalmente do tipo quadriparética, epilepsias de difícil controle e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Déficits cognitivos, transtornos do espectro autista e distúrbios comportamentais, como TDAH, são prevalentes e correlacionam-se com a gravidade da lesão encefálica inicial (Tratado de Neurologia Infantil, 2017).
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico da EHI baseia-se em critérios clínicos e laboratoriais robustos, corroborados por métodos de neuroimagem e eletrofisiologia. O reconhecimento precoce do evento hipóxico-isquêmico é crucial, exigindo anamnese obstétrica minuciosa e exame físico neonatal detalhado. Marcadores bioquímicos de acidose metabólica, como pH arterial inferior a 7,0 e excesso de bases superior a -12 mEq/L, reforçam o diagnóstico.
A ressonância magnética nuclear (RMN), idealmente realizada entre o terceiro e o quinto dia de vida, é o exame padrão-ouro para avaliação estrutural e prognóstica. Sequências de difusão detectam precocemente restrições na substância cinzenta profunda e no córtex perirolândico, enquanto as imagens em T1 e T2 evidenciam lesões crônicas. A espectroscopia de ressonância magnética, particularmente a relação lactato/N-acetilaspartato, tem valor prognóstico significativo (Diagnostic Imaging: Pediatric Neuroradiology, 2019).
A monitorização contínua de aEEG fornece informações valiosas sobre a gravidade da encefalopatia e a resposta à hipotermia terapêutica. Um padrão de burst-suppression ou baixa amplitude persistente por mais de 24 horas associa-se a prognóstico reservado. Biomarcadores séricos e liquóricos, como proteína S100B e enolase específica de neurônios (NSE), emergem como ferramentas auxiliares no prognóstico, embora seu uso clínico ainda careça de padronização.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Distinguir a EHI de outras causas de encefalopatia neonatal é um exercício de raciocínio clínico refinado. As infecções congênitas (TORCH) compartilham características de encefalopatia e convulsões, mas associam-se a microcefalia, calcificações intracranianas e restrição de crescimento intrauterino. As doenças metabólicas hereditárias, como a acidemia metilmalônica e a hiperglicinemia não cetótica, apresentam acidose metabólica refratária e anormalidades laboratoriais específicas.
A hemorragia intracraniana deve ser considerada em neonatos com coagulopatias, evidenciada por ultrassonografia transfontanelar. A síndrome do bebê sacudido inclui hemorragias subdurais e retinianas, geralmente em contexto de trauma não acidental. O diagnóstico diferencial também inclui distúrbios de transição neonatal e encefalopatias mitocondriais precoces.
TRATAMENTO E MANEJO
O advento da hipotermia terapêutica revolucionou o manejo da EHI, sendo atualmente a intervenção neuroprotetora padrão para neonatos ≥36 semanas com EHI moderada a grave. O resfriamento corporal total ou seletivo para 33-34°C deve ser iniciado idealmente nas primeiras seis horas de vida e mantido por 72 horas, seguido de reaquecimento lento.
O manejo das convulsões requer uso de fenobarbital como primeira linha, embora levetiracetam venha ganhando espaço devido a seu perfil de segurança favorável. A eritropoetina recombinante humana (rhEPO), em doses elevadas, mostra potencial neuroprotetor aditivo, sendo objeto de ensaios clínicos promissores.
O suporte hemodinâmico, respiratório e metabólico é fundamental para mitigar lesões secundárias. Estratégias de ventilação protetora, monitorização da pressão de perfusão cerebral e controle glicêmico rigoroso são indispensáveis. A abordagem multidisciplinar deve incluir fisioterapia intensiva precoce, terapia ocupacional e estimulação sensorial adequada ao desenvolvimento.
COMPLICAÇÕES
As complicações da EHI são extensas e frequentemente inter-relacionadas. O risco de paralisia cerebral espástica, particularmente nas formas quadriparéticas, é elevado. Epilepsias refratárias e síndrome de West constituem manifestações frequentes nos sobreviventes. A hipotermia terapêutica, embora benéfica, pode cursar com bradicardia, hipotensão e coagulopatia.
O impacto sobre a função cognitiva e comportamental pode ser profundo, com elevada prevalência de déficits de atenção, distúrbios do espectro autista e transtornos de ansiedade. A vigilância contínua para identificar e tratar precocemente essas complicações é imperativa para otimizar a qualidade de vida.
PROGNÓSTICO
O prognóstico da EHI é diretamente proporcional à gravidade da encefalopatia inicial e ao tempo decorrido até o início da hipotermia terapêutica. Crianças com EHI leve tendem a evoluir sem sequelas, enquanto aquelas com formas graves apresentam altas taxas de morbidade e mortalidade.
Os achados em RM, padrões de EEG e biomarcadores como lactato/N-acetilaspartato na espectroscopia são preditores confiáveis de desfechos. Ensaios clínicos com agentes neuroprotetores adicionais, como xenônio e melatonina, buscam melhorar esses prognósticos.
AVANÇOS RECENTES E PESQUISAS FUTURAS
Os avanços na compreensão da EHI transcendem a hipotermia terapêutica. Terapias celulares com células-tronco mesenquimais e hematopoiéticas estão em fases clínicas iniciais. Modulação epigenética, terapias genéticas e estratégias de imunomodulação seletiva emergem como abordagens de próxima geração.
A inteligência artificial aplicada à análise de EEG e neuroimagem promete melhorar a acurácia diagnóstica e prognóstica. Estudos longitudinais investigam os impactos da neuroreabilitação precoce intensiva e os efeitos de intervenções farmacológicas personalizadas.
CONSIDERAÇÕES CLÍNICAS E REFLEXÕES FINAIS
A EHI permanece como uma condição de alta complexidade, exigindo expertise técnica e sensibilidade ética por parte do neurologista pediátrico. A incorporação de novas tecnologias e abordagens terapêuticas deve ser acompanhada de reflexão crítica sobre sua aplicabilidade e equidade de acesso.
REFERÊNCIAS
- Continuum Neurology: Glass, H.C. et al. (2018). Hypoxic-Ischemic Encephalopathy. Continuum Neurology, 24(1), 57-85.